Carta 4: Sobre os Terrores da Morte

A Carta 4 de Sêneca a Lucílio, explorada neste artigo, mergulha na relação humana com a morte, maturidade emocional e autoaperfeiçoamento, alinhando-se com os princípios estoicos de aceitação, foco no controle interno e busca pela virtude. Através de reflexões sobre a transição para a sabedoria, enfrentamento de medos irracionais, aceitação serena da morte, valorização inadequada da vida, resiliência, instabilidade da fortuna e simplicidade, o artigo destaca como os ensinamentos estoicos podem auxiliar na busca por uma vida plena e serena, mesmo diante da inevitabilidade da morte.

A seguir apresento a uma das cartas de Sêneca a Lucílio, disponível em O Estoico, um maravilhoso site sobre estoicismo e responsável pelas traduções das cartas de Sêneca. Ao final adicionei diversas reflexões para aprofundar o conteúdo da carta.

Carta 4: Sobre os Terrores da Morte
Carta 4: Sobre os Terrores da Morte

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Mantenha-se como você começou, e se apresse a fazer o que é possível, de modo que você possa ter mais prazer de uma mente aperfeiçoada que esteja em paz consigo mesmo. Sem dúvida, você vai auferir prazer durante o tempo em que você estiver melhorando a sua mente e estará em paz consigo mesmo, mas é bem superior o prazer que vem da contemplação quando a mente está tão limpa que brilha.
  2. Você se lembra, é claro, que alegria você sentiu quando deixou de lado as vestes de infância e vestiu a toga de homem[1], e foi escoltado ao fórum; no entanto, você pode ansiar a uma alegria maior quando você deixar de lado a mente da infância e quando a sabedoria lhe tiver inscrito entre os homens. Porque não é a infância que ainda permanece com nós, mas algo pior, – a infantilidade, e esta condição é tanto mais séria quanto possuímos a autoridade da velhice em conjunto com a insensatez da infância, sim, até mesmo as tolices da infância. Os meninos temem coisas sem importância, as crianças temem sombras, nós tememos ambos.
  3. Tudo que você precisa fazer é avançar; compreenderá que algumas coisas são menos temíveis, precisamente porque elas nos estimulam com grande medo. Nenhum mal é tão grande, quanto é o último mal de todos. A morte chega; seria uma coisa a temer, se pudesse ficar com você. Mas a morte não deve vir, ou então deve vir e passar.
  4. “É difícil, entretanto,” você diz, “trazer a mente a um ponto onde pode menosprezar a vida.” Mas você não vê que razões insignificantes impelem os homens a desprezar a vida? Um enforca-se diante da porta de sua amante; outro se atira da casa para não mais ser obrigado a suportar as provocações de um mestre mal-humorado; um terceiro, para ser salvo da prisão, enfia uma espada em seus órgãos vitais. Você não acha que a virtude será tão eficaz quanto o medo excessivo? Nenhum homem pode ter uma vida pacífica que pense demais em alongá-la ou acredite que viver por muitas atribuições é uma grande bênção.
  5. Repasse este pensamento todos os dias, para que você possa sair da vida contente; pois muitos homens se apegam e agarraram-se à vida, assim como aqueles que são levados por uma correnteza e se apegam e agarram-se a pedras afiadas. A maioria dos homens minguam e fluem em miséria entre o medo da morte e as dificuldades da vida; eles não estão dispostos a viver, e ainda não sabem como morrer.
  6. Por esta razão, torne a vida como um todo agradável para si mesmo, banindo todas as preocupações com ela. Nenhuma coisa boa torna seu possuidor feliz, a menos que sua mente esteja harmonizada com a possibilidade da perda; nada, contudo, se perde com menos desconforto do que aquilo que, quando perdido, não se dá falta. Portanto, encoraje e endureça seu espírito contra os percalços que afligem até os mais poderosos.
  7. Por exemplo, o destino de Pompeu foi estabelecido por um menino e um eunuco, o de Crasso por uma Pérsia cruel e insolente. Caio César ordenou Lépido a desnudar seu pescoço para o machado de Dexter; e ele mesmo ofereceu sua própria garganta a Cássio Quereia[2]. Nenhum homem jamais foi tão guiado pela fortuna que ela não o ameaçou tão grandemente como ela o havia favorecido anteriormente. Não confie na aparência de calma; em um momento o mar se agita até suas profundezas. No mesmo dia em que os navios fizeram uma exibição valente nos jogos, eles foram engolidos.
  8. Reflita que um bandido ou um inimigo pode cortar sua garganta; e, embora não seja seu senhor, cada escravo exerce o poder da vida e da morte sobre você. Portanto, eu lhe declaro: é senhor de sua vida aquele que a despreza. Pense naqueles que morreram por meio de conspiração em sua própria casa, mortos abertamente ou por artimanha; você perceberá que tantos foram mortos por escravos raivosos como por reis irados. O que importa, portanto, quão poderoso é quem você teme, quando cada pessoa possui o poder que inspira o seu medo?
  9. “Mas,” você dirá, “se você acaso cair nas mãos do inimigo, o conquistador ordenará que você seja levado”, – sim, para onde você já estava sendo conduzido. Por que você voluntariamente se engana e exige que lhe digam agora pela primeira vez qual é o destino que há muito tempo o aguarda? Acredite em mim: desde que você nasceu você está sendo conduzido para lá. Devemos refletir sobre esse pensamento, e pensamentos similares, se desejamos ter calma enquanto aguardamos esta última hora, o medo dela faz todas as horas anteriores desconfortáveis.
  10. Mas preciso terminar minha carta. Deixe-me compartilhar com você o provérbio que me agradou hoje. Ele também é selecionado do jardim de outro homem[3]: “Pobreza colocada em conformidade com a lei da natureza, é grande riqueza”. Você sabe quais os limites que a lei da natureza ordena para nós? Apenas evitar a fome, a sede e o frio. A fim de banir a fome e a sede, não é necessário para você cortejar às portas dos ricos, ou submeter-se ao olhar severo, ou à bondade que humilha; nem é necessário para você percorrer os mares, ou ir à guerra; as necessidades da natureza são facilmente fornecidas e estão sempre à mão.
  11. São as coisas supérfluas pelas quais os homens labutam, as coisas supérfluas que desgastam nossas togas a farrapos, que nos obrigam a envelhecer no acampamento, que nos levam às costas estrangeiras. O que é suficiente está pronto e ao alcance das nossas mãos. Aquele que fez um justo pacto com a pobreza é rico.”
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Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] A toga pretexta, com borda púrpura, era substituída pela toga viril, inteiramente branca, aos 16 anos, quando o jovem era apresentado à vida pública no fórum, praça em que se faziam discursos políticos e judiciais, além de transações comerciais. A toga pretexta também era usada a senadores e magistrados.

[2] Cássio Quereia: existem relatos que afirmam que o imperador Calígula constantemente o humilhava por suas maneiras supostamente afeminadas. Como vingança, juntamente com seu colega de tribuna Cornélio Sabino, ele conspirou contra o imperador e em janeiro de 41, fez suas vítimas; assassinando também a mulher de Calígula.

[3] O Jardim de Epicuro.

Reflexões Sobre a Carta 4 de Sêneca: Desmistificando os Terrores da Morte

A Carta 4 de Sêneca a Lucílio, intitulada “Sobre os Terrores da Morte”, traz um mergulho profundo na condição humana e nossa relação com a morte, uma jornada de autoconhecimento e maturidade emocional. Cada trecho da carta revela aspectos relevantes que se entrelaçam com os princípios do Estoicismo. Este artigo se propõe a explorar e refletir sobre essas passagens, alinhando-as com os ensinamentos estoicos.

Reflexões Sobre a Carta 4 de Sêneca: Desmistificando os Terrores da Morte
Reflexões Sobre a Carta 4 de Sêneca: Desmistificando os Terrores da Morte

O Início do Autoaperfeiçoamento

“Mantenha-se como você começou, e se apresse a fazer o que é possível, de modo que você possa ter mais prazer de uma mente aperfeiçoada que esteja em paz consigo mesmo.”

Sêneca destaca a importância do contínuo autoaperfeiçoamento e a busca pela paz interior. Este é o alicerce do Estoicismo, que nos encoraja a focar no que está sob nosso controle e a cultivar a virtude para alcançar uma mente tranquila.

A Transição para a Maturidade

“Você se lembra, é claro, que alegria você sentiu quando deixou de lado as vestes de infância e vestiu a toga de homem[1], e foi escoltado ao fórum; no entanto, você pode ansiar a uma alegria maior quando você deixar de lado a mente da infância e quando a sabedoria lhe tiver inscrito entre os homens.”

A analogia entre a transição da infância para a vida adulta e a transição da ignorância para a sabedoria é poderosa. A busca pela sabedoria e a superação da “infantilidade” mental são vistas como passos cruciais na jornada estoica.

O Medo Irracional

“Os meninos temem coisas sem importância, as crianças temem sombras, nós tememos ambos. Tudo que você precisa fazer é avançar; compreenderá que algumas coisas são menos temíveis, precisamente porque elas nos estimulam com grande medo.”

O Medo Irracional
O Medo Irracional

O enfrentamento do medo, especialmente o medo da morte, é um tema recorrente no Estoicismo. Sêneca nos lembra que muitos de nossos temores são infundados ou exagerados, e que através da razão, podemos superar esses medos e viver com coragem.

A Aceitação da Morte

“A morte chega; seria uma coisa a temer, se pudesse ficar com você. Mas a morte não deve vir, ou então deve vir e passar.”

A aceitação serena da morte é um princípio fundamental do Estoicismo. Ao entendermos a morte como uma parte natural da vida e não algo a ser temido, podemos viver com maior propósito e serenidade.

A Valorização Inadequada da Vida

“Nenhum homem pode ter uma vida pacífica que pense demais em alongá-la ou acredite que viver por muitas atribuições é uma grande bênção.”

A obsessão com a longevidade pode levar a uma vida de ansiedade e medo. Sêneca nos encoraja a focar na qualidade de vida, vivendo de acordo com a virtude, ao invés de se preocupar com a duração de nossa existência.

A Importância da Resiliência

“Nenhuma coisa boa torna seu possuidor feliz, a menos que sua mente esteja harmonizada com a possibilidade da perda; nada, contudo, se perde com menos desconforto do que aquilo que, quando perdido, não se dá falta.”

O ensinamento estoico de resiliência e aceitação brilha aqui. Ao nos harmonizarmos com a impermanência, cultivamos uma resiliência que nos permite enfrentar as adversidades com equanimidade.

As Reviravoltas da Fortuna

“Nenhum homem jamais foi tão guiado pela fortuna que ela não o ameaçou tão grandemente como ela o havia favorecido anteriormente.”

As Reviravoltas da Fortuna
As Reviravoltas da Fortuna

A instabilidade da fortuna é uma lembrança para não basearmos nossa felicidade em circunstâncias externas, mas sim em nosso caráter e virtude interna, que estão sob nosso controle.

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A Simplicidade e a Riqueza Interior

“Pobreza colocada em conformidade com a lei da natureza, é grande riqueza.”

A valorização da simplicidade e o reconhecimento de que a verdadeira riqueza reside no contentamento interno, não nas posses materiais, ecoam os princípios estoicos de autossuficiência e contentamento.

A Carta 4 de Sêneca é um convite à introspecção, ao autoaperfeiçoamento e à aceitação corajosa da vida e da morte. Ao refletir sobre essas passagens, encontramos uma rica tapeçaria de insights estoicos que podem guiar nosso caminho em busca de uma vida plena e virtuosa.

Marcos Mariano
Marcos Mariano

Olá, sou Marcos Mariano, o criador do "Estoico Viver" e sou apaixonado pelo Estoicismo. Minha jornada na filosofia estoica começou com a busca por uma maneira de viver uma vida mais significativa, resiliente e virtuosa. Ao longo dos anos, mergulhei profundamente nos ensinamentos dos grandes filósofos estoicos, como Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio, e encontrei inspiração e orientação valiosas para enfrentar os desafios da vida moderna.

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