A seguir apresento a uma das cartas de Sêneca a Lucílio, disponível em O Estoico, um maravilhoso site sobre estoicismo e responsável pelas traduções das cartas de Sêneca. Ao final adicionei diversas reflexões para aprofundar o conteúdo da carta.
Saudações de Sêneca a Lucílio.
- Mantenha-se como você começou, e se apresse a fazer o que é possível, de modo que você possa ter mais prazer de uma mente aperfeiçoada que esteja em paz consigo mesmo. Sem dúvida, você vai auferir prazer durante o tempo em que você estiver melhorando a sua mente e estará em paz consigo mesmo, mas é bem superior o prazer que vem da contemplação quando a mente está tão limpa que brilha.
- Você se lembra, é claro, que alegria você sentiu quando deixou de lado as vestes de infância e vestiu a toga de homem[1], e foi escoltado ao fórum; no entanto, você pode ansiar a uma alegria maior quando você deixar de lado a mente da infância e quando a sabedoria lhe tiver inscrito entre os homens. Porque não é a infância que ainda permanece com nós, mas algo pior, – a infantilidade, e esta condição é tanto mais séria quanto possuímos a autoridade da velhice em conjunto com a insensatez da infância, sim, até mesmo as tolices da infância. Os meninos temem coisas sem importância, as crianças temem sombras, nós tememos ambos.
- Tudo que você precisa fazer é avançar; compreenderá que algumas coisas são menos temíveis, precisamente porque elas nos estimulam com grande medo. Nenhum mal é tão grande, quanto é o último mal de todos. A morte chega; seria uma coisa a temer, se pudesse ficar com você. Mas a morte não deve vir, ou então deve vir e passar.
- “É difícil, entretanto,” você diz, “trazer a mente a um ponto onde pode menosprezar a vida.” Mas você não vê que razões insignificantes impelem os homens a desprezar a vida? Um enforca-se diante da porta de sua amante; outro se atira da casa para não mais ser obrigado a suportar as provocações de um mestre mal-humorado; um terceiro, para ser salvo da prisão, enfia uma espada em seus órgãos vitais. Você não acha que a virtude será tão eficaz quanto o medo excessivo? Nenhum homem pode ter uma vida pacífica que pense demais em alongá-la ou acredite que viver por muitas atribuições é uma grande bênção.
- Repasse este pensamento todos os dias, para que você possa sair da vida contente; pois muitos homens se apegam e agarraram-se à vida, assim como aqueles que são levados por uma correnteza e se apegam e agarram-se a pedras afiadas. A maioria dos homens minguam e fluem em miséria entre o medo da morte e as dificuldades da vida; eles não estão dispostos a viver, e ainda não sabem como morrer.
- Por esta razão, torne a vida como um todo agradável para si mesmo, banindo todas as preocupações com ela. Nenhuma coisa boa torna seu possuidor feliz, a menos que sua mente esteja harmonizada com a possibilidade da perda; nada, contudo, se perde com menos desconforto do que aquilo que, quando perdido, não se dá falta. Portanto, encoraje e endureça seu espírito contra os percalços que afligem até os mais poderosos.
- Por exemplo, o destino de Pompeu foi estabelecido por um menino e um eunuco, o de Crasso por uma Pérsia cruel e insolente. Caio César ordenou Lépido a desnudar seu pescoço para o machado de Dexter; e ele mesmo ofereceu sua própria garganta a Cássio Quereia[2]. Nenhum homem jamais foi tão guiado pela fortuna que ela não o ameaçou tão grandemente como ela o havia favorecido anteriormente. Não confie na aparência de calma; em um momento o mar se agita até suas profundezas. No mesmo dia em que os navios fizeram uma exibição valente nos jogos, eles foram engolidos.
- Reflita que um bandido ou um inimigo pode cortar sua garganta; e, embora não seja seu senhor, cada escravo exerce o poder da vida e da morte sobre você. Portanto, eu lhe declaro: é senhor de sua vida aquele que a despreza. Pense naqueles que morreram por meio de conspiração em sua própria casa, mortos abertamente ou por artimanha; você perceberá que tantos foram mortos por escravos raivosos como por reis irados. O que importa, portanto, quão poderoso é quem você teme, quando cada pessoa possui o poder que inspira o seu medo?
- “Mas,” você dirá, “se você acaso cair nas mãos do inimigo, o conquistador ordenará que você seja levado”, – sim, para onde você já estava sendo conduzido. Por que você voluntariamente se engana e exige que lhe digam agora pela primeira vez qual é o destino que há muito tempo o aguarda? Acredite em mim: desde que você nasceu você está sendo conduzido para lá. Devemos refletir sobre esse pensamento, e pensamentos similares, se desejamos ter calma enquanto aguardamos esta última hora, o medo dela faz todas as horas anteriores desconfortáveis.
- Mas preciso terminar minha carta. Deixe-me compartilhar com você o provérbio que me agradou hoje. Ele também é selecionado do jardim de outro homem[3]: “Pobreza colocada em conformidade com a lei da natureza, é grande riqueza”. Você sabe quais os limites que a lei da natureza ordena para nós? Apenas evitar a fome, a sede e o frio. A fim de banir a fome e a sede, não é necessário para você cortejar às portas dos ricos, ou submeter-se ao olhar severo, ou à bondade que humilha; nem é necessário para você percorrer os mares, ou ir à guerra; as necessidades da natureza são facilmente fornecidas e estão sempre à mão.
- São as coisas supérfluas pelas quais os homens labutam, as coisas supérfluas que desgastam nossas togas a farrapos, que nos obrigam a envelhecer no acampamento, que nos levam às costas estrangeiras. O que é suficiente está pronto e ao alcance das nossas mãos. Aquele que fez um justo pacto com a pobreza é rico.”
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] A toga pretexta, com borda púrpura, era substituída pela toga viril, inteiramente branca, aos 16 anos, quando o jovem era apresentado à vida pública no fórum, praça em que se faziam discursos políticos e judiciais, além de transações comerciais. A toga pretexta também era usada a senadores e magistrados.
[2] Cássio Quereia: existem relatos que afirmam que o imperador Calígula constantemente o humilhava por suas maneiras supostamente afeminadas. Como vingança, juntamente com seu colega de tribuna Cornélio Sabino, ele conspirou contra o imperador e em janeiro de 41, fez suas vítimas; assassinando também a mulher de Calígula.
[3] O Jardim de Epicuro.
Reflexões Sobre a Carta 4 de Sêneca: Desmistificando os Terrores da Morte
A Carta 4 de Sêneca a Lucílio, intitulada “Sobre os Terrores da Morte”, traz um mergulho profundo na condição humana e nossa relação com a morte, uma jornada de autoconhecimento e maturidade emocional. Cada trecho da carta revela aspectos relevantes que se entrelaçam com os princípios do Estoicismo. Este artigo se propõe a explorar e refletir sobre essas passagens, alinhando-as com os ensinamentos estoicos.
O Início do Autoaperfeiçoamento
“Mantenha-se como você começou, e se apresse a fazer o que é possível, de modo que você possa ter mais prazer de uma mente aperfeiçoada que esteja em paz consigo mesmo.”
Sêneca destaca a importância do contínuo autoaperfeiçoamento e a busca pela paz interior. Este é o alicerce do Estoicismo, que nos encoraja a focar no que está sob nosso controle e a cultivar a virtude para alcançar uma mente tranquila.
A Transição para a Maturidade
“Você se lembra, é claro, que alegria você sentiu quando deixou de lado as vestes de infância e vestiu a toga de homem[1], e foi escoltado ao fórum; no entanto, você pode ansiar a uma alegria maior quando você deixar de lado a mente da infância e quando a sabedoria lhe tiver inscrito entre os homens.”
A analogia entre a transição da infância para a vida adulta e a transição da ignorância para a sabedoria é poderosa. A busca pela sabedoria e a superação da “infantilidade” mental são vistas como passos cruciais na jornada estoica.
O Medo Irracional
“Os meninos temem coisas sem importância, as crianças temem sombras, nós tememos ambos. Tudo que você precisa fazer é avançar; compreenderá que algumas coisas são menos temíveis, precisamente porque elas nos estimulam com grande medo.”
O enfrentamento do medo, especialmente o medo da morte, é um tema recorrente no Estoicismo. Sêneca nos lembra que muitos de nossos temores são infundados ou exagerados, e que através da razão, podemos superar esses medos e viver com coragem.
A Aceitação da Morte
“A morte chega; seria uma coisa a temer, se pudesse ficar com você. Mas a morte não deve vir, ou então deve vir e passar.”
A aceitação serena da morte é um princípio fundamental do Estoicismo. Ao entendermos a morte como uma parte natural da vida e não algo a ser temido, podemos viver com maior propósito e serenidade.
A Valorização Inadequada da Vida
“Nenhum homem pode ter uma vida pacífica que pense demais em alongá-la ou acredite que viver por muitas atribuições é uma grande bênção.”
A obsessão com a longevidade pode levar a uma vida de ansiedade e medo. Sêneca nos encoraja a focar na qualidade de vida, vivendo de acordo com a virtude, ao invés de se preocupar com a duração de nossa existência.
A Importância da Resiliência
“Nenhuma coisa boa torna seu possuidor feliz, a menos que sua mente esteja harmonizada com a possibilidade da perda; nada, contudo, se perde com menos desconforto do que aquilo que, quando perdido, não se dá falta.”
O ensinamento estoico de resiliência e aceitação brilha aqui. Ao nos harmonizarmos com a impermanência, cultivamos uma resiliência que nos permite enfrentar as adversidades com equanimidade.
As Reviravoltas da Fortuna
“Nenhum homem jamais foi tão guiado pela fortuna que ela não o ameaçou tão grandemente como ela o havia favorecido anteriormente.”
A instabilidade da fortuna é uma lembrança para não basearmos nossa felicidade em circunstâncias externas, mas sim em nosso caráter e virtude interna, que estão sob nosso controle.
A Simplicidade e a Riqueza Interior
“Pobreza colocada em conformidade com a lei da natureza, é grande riqueza.”
A valorização da simplicidade e o reconhecimento de que a verdadeira riqueza reside no contentamento interno, não nas posses materiais, ecoam os princípios estoicos de autossuficiência e contentamento.
A Carta 4 de Sêneca é um convite à introspecção, ao autoaperfeiçoamento e à aceitação corajosa da vida e da morte. Ao refletir sobre essas passagens, encontramos uma rica tapeçaria de insights estoicos que podem guiar nosso caminho em busca de uma vida plena e virtuosa.