Carta 7: Sobre multidões

O artigo explora a Carta 7 de Sêneca a Lucílio, que adverte sobre os perigos de se misturar com as multidões, comparando-as a um espetáculo que pode corromper o caráter. Sêneca confessa que mesmo ele não é imune a essas influências negativas, destacando que a exposição à violência e ao comportamento imoral pode reacender vícios antigos. Ele utiliza metáforas poderosas, como a de um paciente doente e os jogos cruéis do estádio, para ilustrar como a multidão pode afetar até mesmo os mais virtuosos, e enfatiza a importância de se associar com pessoas que nos encorajam a melhorar. O artigo conclui refletindo sobre a mensagem de Sêneca de que devemos buscar o autoaperfeiçoamento e a educação por nós mesmos, e não pela aprovação da multidão.

A seguir apresento a uma das cartas de Sêneca a Lucílio, disponível em O Estoico, um maravilhoso site sobre estoicismo e responsável pelas traduções das cartas de Sêneca. Ao final adicionei diversas reflexões para aprofundar o conteúdo da carta.

Carta 7: Sobre multidões
Carta 7: Sobre multidões

Saudações de Sêneca a Lucílio

  1. Você me pergunta o que você deve considerar evitar em especial? Eu digo, multidões; Porque ainda não pode confiar em si com segurança. Admito, de qualquer maneira, minha própria fraqueza; porque eu nunca trago de volta para casa o mesmo caráter que eu levei para fora comigo. Algo do que eu tenho forçado a ficar em paz dentro de mim é perturbado; alguns dos inimigos que eu havia eliminado voltam novamente. Assim como o homem doente, que tem estado fraco há muito tempo, está em tal condição que não pode ser tirado de casa sem sofrer uma recaída, então nós mesmos somos afetados quando nossas almas estão se recuperando de uma doença prolongada.
  2. Ligar-se à multidão é prejudicial; não há ninguém que não torne algum vício cativante para nós, nem o escancare sobre nós, nem nos manche inconscientemente com ele. Certamente, quanto maior a multidão com que nos misturamos, maior o perigo. Mas nada é tão prejudicial ao bom caráter como o hábito de frequentar os estádios; pois é lá que o vício penetra sutilmente por uma avenida de prazer.
  3. O que você acha que eu quero dizer? Quero dizer que volto para casa mais ganancioso, mais ambicioso, mais voluptuoso e ainda mais cruel e desumano, porque eu estive entre os seres humanos. Por acaso, eu assisti a uma apresentação matutina, esperando um pouco de diversão, sagacidade e relaxamento, uma exposição na qual os olhos dos homens têm descanso do massacre de seus semelhantes. Mas foi exatamente o contrário. Antigamente esses combates eram a essência da compaixão; mas agora todo o trivial é posto de lado e resta apenas puro assassinato. Os homens não têm armadura defensiva[1]. Eles estão expostos a golpes em todos os pontos, e ninguém nunca atira em vão.
  4. Muitas pessoas preferem este programa aos duelos habituais e combates “a pedido”. Claro que sim; não há capacete ou escudo para desviar o golpe. Qual é a necessidade de armadura defensiva, ou de habilidade? Tudo isso significa adiar a morte. Pela manhã lançam homens aos leões e aos ursos; ao meio-dia, jogam-nos aos espectadores. Os espectadores exigem que o assassino encare o homem que vai matá-lo por sua vez; e eles sempre reservam o último vitorioso para outro massacre. O resultado de cada luta é a morte, e os meios são fogo e espada. Esse tipo de coisa continua enquanto a arena está vazia.
  5. Você pode replicar: “Mas ele era um ladrão de estrada, ele matou um homem!” E dai? Admitido que, como assassino, merecia este castigo, que crime você cometeu, pobre colega, que você mereça sentar-se e ver este espetáculo? Pela manhã, eles clamaram: “Mate-o, açoite-o, queime-o, por que ele usa a espada de uma maneira tão covarde, por que ele bate tão debilmente, por que ele não morre no jogo, chicoteie-o para arder suas feridas! Deixe-o receber golpe por golpe, com peitos nus e expostos ao ataque!” E quando os jogos param para o intervalo, eles anunciam: “Um pouco gargantas sendo cortadas, para que possa haver algo acontecendo!” Convenhamos, você[2] não entende sequer esta verdade, que um mau exemplo retorna contra o agente? Agradeça aos deuses imortais que você está ensinando crueldade a uma pessoa que não pode aprender a ser cruel.
  6. O jovem caráter, que não consegue se manter íntegro, deve ser resgatado da multidão; é muito fácil tomar o partido da maioria. Mesmo Sócrates, Catão e Lélio poderiam ter sido abalados em sua força moral por uma multidão que era diferente deles; tão verdadeiro é que nenhum de nós, por mais que cultive suas habilidades, pode resistir ao choque de falhas que se acercam, por assim dizer, de tão grande séquito.
  7. Muito dano é feito por um único caso de indulgência ou ganância; o amigo da família, se ele é luxuoso, nos enfraquece e suaviza imperceptivelmente; o vizinho, se for rico, desperta nossa cobiça; o colega, se ele for calunioso, dissipa algo de seu bolor em cima de nós, mesmo que nós sejamos impecáveis e sinceros. Qual então você acha que será o efeito sobre o caráter, quando o mundo em geral o assalta! Você deve imitar ou abominar o mundo.
  8. Mas ambos os cursos devem ser evitados; você não deve copiar o mau simplesmente porque eles são muitos, nem você deve odiar os muitos, porque eles são diferentes de você. Concentre-se em si mesmo, tanto quanto puder. Associe-se com aqueles que irão lhe fazer um homem melhor. Dê boas-vindas àqueles que podem fazer você melhorar. O processo é mútuo; pois os homens aprendem enquanto ensinam.
  9. Não há razão para que o orgulho em divulgar suas habilidades deva atraí-lo para a notoriedade, de modo a faze-lo desejar recitar ou discursar frente ao público. É claro que deveria estar disposto a fazê-lo se você tivesse uma habilidade que se adeque a tal multidão; como são, não há um homem entre eles que possa lhe entender. Um ou dois indivíduos talvez aceitarão sua maneira, mas mesmo estes terão que ser moldados e treinados por você de modo a compreende-lo. Você pode dizer: “Com que propósito eu aprendi todas essas coisas?” Mas você não precisa recear ter desperdiçado seus esforços; foi por si mesmo que você aprendeu.
  10. No entanto, para que eu não tenha hoje aprendido exclusivamente para mim, compartilharei com vocês três excelentes ditados, do mesmo sentido geral, que me chamaram a atenção. Esta carta lhe dará um deles como pagamento da minha dívida; os outros dois você pode aceitar como um adiantamento. Demócrito[3] diz: “Um homem significa tanto para mim como uma multidão, e uma multidão apenas tanto como um homem.”
  11. O seguinte também foi nobremente falado por alguém ou outro, pois é duvidoso quem foi o autor; eles perguntaram-lhe qual era o objeto de todo este estudo aplicado a uma arte que alcançaria muito poucos. Ele respondeu: “Estou contente com poucos, contente com um, contente com nenhum”. O terceiro ditado – e também notável – é de Epicuro, escrito a um dos parceiros de seus estudos: “Eu escrevo isto não para muitos, mas para você, cada um de nós é o suficiente como público do outro.”
  12. Coloque estas palavras no coração, Lucílio, que você pode desprezar o prazer que vem dos aplausos da maioria. Muitos homens te louvam; mas você tem alguma razão para estar satisfeito consigo mesmo, se você é uma pessoa que muitos conseguem entender? Suas boas qualidades devem focar para dentro.
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Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Durante o intervalo do almoço, criminosos condenados são frequentemente levados para a arena e obrigados a lutar, para a diversão dos espectadores que permaneceram por toda a parte do dia.

[2] A observação é dirigida aos espectadores brutalizados.

[3] Demócrito de Abdera (ca. 460 a.C. — 370 a.C.) nasceu na cidade de Mileto, viajou pela Babilônia, Egito e Atenas, e se estabeleceu em Abdera no final do século V a.C.  Demócrito foi discípulo e depois sucessor de Leucipo de Mileto. A fama de Demócrito decorre do fato de ele ter sido o maior expoente da teoria atômica ou do atomismo. De acordo com essa teoria, tudo o que existe é composto por elementos indivisíveis chamados átomos.

A Sabedoria de Sêneca sobre Multidões e Caráter

A Sabedoria de Sêneca sobre Multidões e Caráter
A Sabedoria de Sêneca sobre Multidões e Caráter

Introdução ao Pensamento Estoico

No coração do Estoicismo está a busca pela virtude e pela sabedoria, guiada pela razão e pelo autocontrole. Sêneca, um dos mais renomados filósofos estoicos, compartilhou sua sabedoria através de cartas a Lucílio, seu amigo e protegido. A Carta 7, “Sobre multidões”, revela uma profunda análise do impacto das multidões em nosso caráter e virtude. Este artigo explora essa carta, intercalando o texto original com percepções contemporâneas para uma reflexão mais aprofundada.

Evitando Multidões para Preservar o Caráter

“Você me pergunta o que você deve considerar evitar em especial? Eu digo, multidões; Porque ainda não pode confiar em si com segurança.”

Evitando Multidões para Preservar o Caráter
Evitando Multidões para Preservar o Caráter

Aqui, Sêneca alerta Lucílio sobre o perigo das multidões. A sabedoria estoica ensina que devemos nos conhecer e confiar em nossa capacidade de permanecer virtuosos antes de nos envolvermos com a multidão. Este conselho permanece relevante, sugerindo que devemos ser cautelosos com as influências externas antes de solidificar nossa própria força de caráter.

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Reconhecendo a Própria Fragilidade

“Admito, de qualquer maneira, minha própria fraqueza; porque eu nunca trago de volta para casa o mesmo caráter que eu levei para fora comigo.”

Sêneca, com sua humildade estoica, reconhece suas próprias falhas. Ele adverte que o contato com as multidões pode perturbar a paz interior e reviver inimigos internos — nossas paixões e vícios. O autoconhecimento e a vigilância são fundamentais para manter a serenidade e o autocontrole em face das influências corruptoras.

A Analogia do Paciente Doente

“Assim como o homem doente, que tem estado fraco há muito tempo, está em tal condição que não pode ser tirado de casa sem sofrer uma recaída, então nós mesmos somos afetados quando nossas almas estão se recuperando de uma doença prolongada.”

A Analogia do Paciente Doente
A Analogia do Paciente Doente

Sêneca utiliza a metáfora do paciente em recuperação para ilustrar como somos suscetíveis a recaídas morais ao nos misturarmos com as massas. O conceito estoico de que devemos estar em constante vigilância sobre nossa saúde moral é enfatizado, pois como um paciente físico, nossa alma também precisa de cuidados contínuos.

O Perigo dos Estádios e Espetáculos

“Mas nada é tão prejudicial ao bom caráter como o hábito de frequentar os estádios; pois é lá que o vício penetra sutilmente por uma avenida de prazer.”

Nesta passagem, Sêneca critica os jogos e espetáculos públicos da época, os quais eram violentos e cruéis. Ele aponta que esses eventos não apenas entretêm, mas também dessensibilizam os espectadores à brutalidade, corrompendo o caráter. É uma lição sobre como o entretenimento pode moldar sutilmente nossos valores e comportamentos.

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A Crítica à Crueldade dos Jogos

“O que você acha que eu quero dizer? Quero dizer que volto para casa mais ganancioso, mais ambicioso, mais voluptuoso e ainda mais cruel e desumano, porque eu estive entre os seres humanos.”

Aqui, Sêneca expressa como a exposição à violência e à crueldade nos eventos públicos pode nos afetar negativamente. Essa exposição pode inflamar nossos piores impulsos, como ganância, ambição desmedida e crueldade, desviando-nos do caminho estoico da virtude.

A Indiferença à Dor Humana

“Muitas pessoas preferem este programa aos duelos habituais e combates “a pedido”. Claro que sim; não há capacete ou escudo para desviar o golpe.”

A Indiferença à Dor Humana
A Indiferença à Dor Humana

Sêneca lamenta a indiferença do público à dor e sofrimento humanos, exemplificada pela preferência por lutas sem armaduras. Ele desafia a normalização da violência e o prazer obtido a partir dela, um apelo à

compaixão e à humanidade, valores centrais do Estoicismo.

A Reflexão sobre o Caráter Jovem e a Influência da Multidão

“O jovem caráter, que não consegue se manter íntegro, deve ser resgatado da multidão; é muito fácil tomar o partido da maioria.”

A juventude é particularmente vulnerável às influências da multidão. Sêneca adverte que os jovens, ainda em desenvolvimento moral, devem ser protegidos das pressões da conformidade. Este conselho é atemporal, enfatizando a importância de cultivar a integridade pessoal sobre a popularidade.

A Resiliência das Virtudes Estoicas

“Mesmo Sócrates, Catão e Lélio poderiam ter sido abalados em sua força moral por uma multidão que era diferente deles.”

Sêneca reconhece que mesmo as figuras mais virtuosas podem ser testadas pela pressão das multidões. Ele insinua que ninguém está imune à influência negativa de um grupo, destacando a necessidade constante de vigilância e autodisciplina.

O Valor da Educação e da Sabedoria Pessoal

“Mas você não deve copiar o mau simplesmente porque eles são muitos, nem você deve odiar os muitos, porque eles são diferentes de você. Concentre-se em si mesmo, tanto quanto puder.”

O Valor da Educação e da Sabedoria Pessoal
O Valor da Educação e da Sabedoria Pessoal

Aqui, Sêneca nos encoraja a buscar a sabedoria e a virtude por nós mesmos, não por notoriedade ou aceitação. Ele promove o autoaperfeiçoamento e o aprendizado pessoal como os verdadeiros objetivos da educação, não a adulação ou o reconhecimento público.

Conclusão: A Importância de Escolher Sabiamente a Companhia

“Associe-se com aqueles que irão lhe fazer um homem melhor. Dê boas-vindas àqueles que podem fazer você melhorar.”

Ao final da carta, Sêneca enfatiza a importância de selecionar cuidadosamente a companhia que mantemos. Devemos procurar por aqueles que nos desafiam a sermos melhores, refletindo a crença estoica de que somos moldados pelas pessoas ao nosso redor.

Conclusão: A Importância de Escolher Sabiamente a Companhia
Conclusão: A Importância de Escolher Sabiamente a Companhia

A Carta 7 de Sêneca oferece uma visão atemporal sobre a natureza humana e o desenvolvimento do caráter. Ao evitarmos multidões que podem desviar-nos do caminho da virtude, e buscarmos o autoaperfeiçoamento e a sabedoria, podemos viver uma vida mais significativa e alinhada com os ideais estoicos de coragem, justiça, moderação e sabedoria. Sêneca nos lembra que, em última instância, devemos buscar a aprovação de nós mesmos, não da multidão.

Marcos Mariano
Marcos Mariano

Olá, sou Marcos Mariano, o criador do "Estoico Viver" e sou apaixonado pelo Estoicismo. Minha jornada na filosofia estoica começou com a busca por uma maneira de viver uma vida mais significativa, resiliente e virtuosa. Ao longo dos anos, mergulhei profundamente nos ensinamentos dos grandes filósofos estoicos, como Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio, e encontrei inspiração e orientação valiosas para enfrentar os desafios da vida moderna.

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